Há quem diga que não se pode falar de política em um show de rock para não misturar "arte com política". Ocorre que o homem é um animal político. As coisas que você pensa, as coisas que você fala e os ídolos que você segue são, em grande parte, impregnadas de política. Sendo assim, não tem cabimento esperar que um dos fundadores de uma das bandas mais influentes da história, Pink Floyd, cuja discografia inclui álbuns contestadores como "Animals" e "The Wall", observasse passivamente a onda de neofascismo que surge em várias partes do mundo. E, mesmo sem referências ao neofascismo no Brasil - talvez por censura, talvez por desilusão -, o show de Roger Waters em Porto Alegre pode sim, ser classificado como um verdadeiro protesto.
O último da turnê Us + Them no Brasil, que ocorreu no estádio Beira-Rio em Porto Alegre, começou com uma pontualidade britânica, ao som de Breathe. O grande telão colocado atrás do palco, que até então apresentava uma imagem tranquila de uma mulher sentada em uma praia deserta, passou a apresentar imagens psicodélicas. A banda tocou "One of These Days" e apesar em "Time" Roger Waters apareceu nos vocais, música que foi precedida de The Great Gig in the Sky, onde a dupla Lucius (Jess Wolfe e Holly Laessig) fizeram um dos mais famosos solos vocais da história da música.
O show ganhou um tom verdadeiramente pesado com a música “Welcome to the Machine”, quando as estrelas do telão foram substituídas pelo clipe da música, que apesar de ser uma crítica dirigida à indústria musical, nos choca em vários aspectos ao mostrar um rio de sangue se transformando em uma multidão, nos fazendo questionar sobre a própria máquina que estamos inseridos. As músicas da carreira solo de Waters, tocadas na sequência, também mantiveram o tom crítico, com “Déjà Vu", "“The Last Refugee" e "Picture That", com críticas à interferência dos EUA no oriente médio e a líderes mundiais como Kim Jong-um, Silvio Berlusconi e George W. Bush, na última canção.
O tom de protesto teve uma pequena trégua com o sucesso Wish You Were Here, mas logo um dos discos mais impactantes estava por vir: The Wall, com The Happiest Days of Our Lives, Another Brick in the Wall Part 2 e Part 3. Foi um momento muito bonito, em que as crianças do projeto Ouviravida, do Bairro Bom Jesus, fizeram o coro de Another Brick in the Wall Part 2, em um primeiro momento com macacões laranjas que lembram os presidiários americanos, e logo em seguida, jogando fora esse macacão e mostrando a mensagem da camiseta: Resist.
Quando Resist apareceu no palco, houve uma certa tensão política, com muitas pessoas entoando o coro de "#Elenão", apesar de algumas vaias e um silêncio desconfortável daqueles que elegeram o novo presidente. Diferentemente dos shows anteriores, não houve nenhuma mensagem direta ao Brasil por parte de Roger Waters, #Elenão não foi exibido no palco e nem mesmo o nome de Bolsonaro apareceu ao lado de Trump, Le Pen e Putin como líderes neofascistas. Mas a mensagem de resistência estava lá. Waters não "se intrometeu na política brasileira", o que incomodou tantos "fãs" durante as eleições, mas manteve o protesto que realizou em todos os shows da turnê Us + Them e os ideais que impregnaram toda a sua carreira, pedindo para resistirmos ao fascismo, antisemitismo, aos crimes de guerra e à ideia de que alguns animais são mais iguais que o outros.
Com essa referência à A Revolução dos Bichos, Waters deu início ao álbum criado por influência do livro, com a diferença que a crítica de Waters não se volta ao comunismo, mas ao capitalismo. No início da música "Dogs", o telão mais uma vez impressionou o público com a inesquecível cena da Usina do disco "Animals" surgindo, com um porco perto das chaminés. Enquanto a música tocava, houve algumas manifestações políticas de Waters e sua banda em alusão ao poder que os porcos, representando os líderes mundiais, teriam sob os demais, e a música "Pigs" teve todo seu videoclipe direcionado a um ataque ao presidente americano Donald Trump, até que finalmente o grande porco voador surgiu no estádio. A mensagem não poderia ser mais necessária: seja humano.
De volta ao Dark Side of the Moon, Waters tocou a icônica "Money", o título da turnê "Us and Them", "Brain Damage" e, o que foi o momento mais bonito do show, Eclipse, momento em que o famoso prisma da capa do álbum foi reproduzido no meio do estádio. Particularmente, Eclipse é uma das minhas músicas preferidas do Pink Floyd, e ouvi-la daquele jeito foi muito especial. Somado aos efeitos especiais, a natureza dava um show à parte, com muitos trovões durante as músicas.
Infelizmente, por conta da tempestade que estava por vir, Roger Waters terminou o show mais cedo. Talvez Roger Waters tivesse tocado mais uma música se não fosse o resultado das eleições - o ídolo parecia bem mais distante do que demonstrou nos outros shows -, mas ouvir Confortably Numb compensa. No final, em sua terceira apresentação em Porto Alegre, Roger Waters fez um show único, transmitindo a mesma mensagem de resistência que vem sendo passada por três gerações, desde a criação de Pink Floyd.
1 comentários
Que pena que o show acabou mais cedo, mas parece ter sido muito legal!
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